1,2,3, ... era uma vez o Porto, pleno de turistas, um vaivém de corpos de vozes ao monte, a palmilhar a Praça dos Poveiros em todas as direções de menús que os estômagos apontam, o Porto devorado, na praça da alimentação ao ar livre, encobrindo a miséria de corpo e alma de todos aqueles que, na mesma praça, se escondem, expostos, alvo do desamor de nós todos que, devagar, os mata.
1,2,3… era uma vez a pandemia.E a Praça (dos Poveiros) devolvida ao seu estado original. Crua imagem fotográfica. Certezas de que a alimentação da Praça fala outras línguas e que alojamento local é chão de pedra e vão de escada.
Manhã. Através do vidro, vejo os moradores de céu aberto, sem teto nem alma, a arrumar o quarto de chão e a tomar banho no lago da praça.
Muitas vezes, a pergunta: ” O que te faz levantar, manhã sobre manhã, tantos dias… todos os dias. Assim. Para isso/isto/arrumar carros/ pedir esmolas/ ou nada… “.
Um dia, de manhã, alguém não se levanta, permanece imóvel. Já não há lua nem estrelas mas para ele/ela sim. A partir de agora, só céu. Aqui já não estará mais. É chamar o 112 para remover o corpo. Limpar a rua com o camião, isso já se faz sempre. Apagar os vestígios de uma vergonha colectiva até ao próximo cair de dia.
1,2,3… era uma vez o desconfinamento. Lentamente, dia após dia, a Praça começa a encher-se de vozes e corpos novos, curiosos/as e corajosos/as e viajantes.
A miséria, verdade original deste local, é novamente obra de Photoshop com passaporte.
“How very tipical we are, indeed “.
Todos os dias, continua a passar regularmente M; agressivo, passos rápidos, sempre aos berros. Pára em frente a nós e vocifera “DÁ-ME UMA CAMISOLA, QUE TENHO FRIO”. Ameaça o mundo-cão através de nós. Segue. Sem aguardar retorno nosso. Despreza-nos. Como despreza tudo: o frio, as doenças, a caridade. principalmente a caridade. Por isso exige. E não aceita.
Por estas ruas que vão dar à Praça passa também F; "pede" dinheiro para "o seu único vício" _ uma coca-cola. Basta-lhe.
CF sempre pediu “uma semanada” _ 1€ por semana. Não tem casa nem comida, mas tem perfil no FaceBook e fala inglês com os turistas. S também está sempre por cá. Tem duas casas, o chão do CC Invictos e o do Pingo Doce. Vai alternando dias entre as duas. Sim, dias. Aproveita o dia para dormir. Suponho que mantenha vigília de noite. A noite é mais perigosa para quem nada tem senão o corpo à mercê de tudo.
1,2,3… Era uma vez nós, o Porto Decente, com CC, casa e comida, impostos para pagar e emprego ou desemprego temporários. O Porto dos problemas de primeiro mundo. Portuenses de gema ou emprestados, cheios de argumentos. Cheios de razão E razões. Plenos de desculpas.
.Mea culpa. Mea culpa. Mea maxima culpa.
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