top of page
MÃO.png

Parte 2

Depois de todas as voltas que o post anterior deu até chegar aos compradores de vintage, damos agora vez/voz aos amantes, aos amadores, aos esporádicos e aos "enganados" do vintage world, focando-nos em razões possíveis para comprar vintage. Prefiro razões a perfis de compradores porque não me é fácil encontrar um perfil ou uma descrição coesa e de consenso para a persona vintage lover. Mesmo as nossas razões vão variando ao longo do tempo além de nem sequer serem as mesmas em dias diferentes. Além disso, um verdadeiro vintage lover (atendendo ao significado de lover) é-o pelo coração (não pelo racional), logo, "terá razões que a razão desconhece!".

A lista que se segue é totalmente empírica, não pretende ser exaustiva e resulta apenas da experiência que fui adquirindo com o desempenho dos dois papéis pivot no processo: de vendedora _ com a Mão Esquerda_ e de compradora de longa data.




(eu, a praticar o meu desporto favorito do outro lado do mundo; e uma das minhas lojas vintage favoritas em Amsterdam, a Episode)


Entre as razões que fazem de alguém um vintage lover e as dos que não sabem ao que vão, podemos identificar algumas que comumente conduzem clientes orientados e desorientados a uma loja vintage:


Oferta de peças datadas e ao mesmo tempo intemporais

(que articula com outra razão em muitos dos casos:_ Afirmação da nossa personalidade e criação do nossos statements de forma única, criativa e original)


As ofertas de vestuário vintage enquadram-se em determinadas épocas (com tendências de moda bem definidas para cada uma delas), permitindo uma combinação de estilos e modelos a quem prefere escolher livremente as suas peças sem que a sua liberdade de escolha seja condicionada pelas tendências da "season" actual _ por exemplo, se ombreiras este ano não "se usam", quem gosta de peças com ombros bem marcados não terá hipótese de comprar peças com ombreiras se não recorrer ao mercado vintage; se estampado tartan não é uma tendência da estação e alguém é fã terá muita dificuldade em comprar uma peça em tartan se não recorrer a lojas vintage; o mesmo se passa se solas compensadas são uma paixão, se alguém gosta de castanho e esta cor não é "tendência", etc, etc etc...


Paixão por uma determinada época

Se me visto regularmente como uma pin up ou se prefiro um estilo 60's habitual é muito mais fácil comprar vintage do que ter de percorrer as produções actuais tentando encontrar uma oferta (reduzida) de peças retro que se assemelhem a peças da época que me apaixona.

Há variantes desta razão: trabalho de figurinos (teatro, cinema, dança...), festas temáticas ...


Peças com "história"

Há pessoas que se interessam pelo contexto da peça que estão a comprar, seja um casaco anos 40 ou umas calças 70's de boca de sino; solicitam informação sobre a época e contexto social e transportam a peça como se transportassem páginas de história junto ao corpo.


Qualidade da peça e materiais

Ainda há muita ligação entre os conceitos de vintage e de qualidade.

A produção de vestuário e acessórios de há algumas décadas tinha preocupações de durabilidade e isso implicava maior atenção à qualidade. A ideia de durabilidade sustentava o fabrico de vestuário, associando-lhe a nobreza de materiais como pura lã ou caxemira, alpaca, sedas e brocados, linho, organza e chiffon, fazendas de lã, bijuterias banhadas a ouro e prata, baquelite...

Mesmo havendo também peças de qualidade menor e/ou duvidosa, havia uma preocupação marcada com garantir durabilidade (contrariamente ao investimento feito actualmente em fast fashion, com objectivo de "usar e deitar fora", que não favorece o investimento na qualidade dos materiais). A própria confecção era mais cuidada e até em materiais menos nobres como a viscose, o poliéster, ou o acetato, a durabilidade continuava a ser um facto.

Daqui decorre uma outra razão de compra, associada à anterior: encontrar melhor relação preço/qualidade; ou seja, com os actuais objectivos de fast fashion, se encontrarmos peças executadas com materiais de boa qualidade, os preços saem completamente fora do orçamento de compras do cliente com budget menos elevado, enquanto que no mercado vintage se consegue adquirir uma peça no mesmo material por um valor muito simpático e dentro do orçamento de que se dispõe (por exemplo, é perfeitamente possível encontrar uma camisola de caxemira, por 20 euros ou um sobretudo de alpaca por 45/50 em lojas vintage, enquanto que peças desses materiais em produção de vestuário actual ascendem a valores maioritariamente no intervalo dos 3 dígitos).


Peças de designer antigas ou coleccionismo em geral

Fashionists e coleccionadores (tanto de peças de determinados designers como de determinado tipo ou época) procuram muitas vezes nas lojas vintage peças de outras épocas de designers que coleccionam ou dos quais são fãs.


(Algumas lojas vintage com designer labels onde me maravilhei muitas vezes com todo o tipo de tesouros

Da esquerda para a direita: House of Liza, Londres _ agora com espaço físico encerrado; Kinji, Tóquio)


Peças/modelos que foram "repescadas/os pelos produtores actuais e voltam a "estar na moda"

Há clientes muito específicos que, não sendo amantes de vintage, estão apenas interessados num tipo de peça que volta a ditar moda numa determinada estação (como é o caso de calças de cintura subida ou saias plissadas, por exemplo) e que pretendem comprar apenas esse tipo de peças mas de preferencia sem serem iguais a milhares de outras _ o que seria o caso, se as adquirissem nas grandes cadeias. Ao comprar em lojas vintage peças com o mesmo tipo de corte, de tecido, de padrão e com garantia de exclusividade (por vezes até com melhor preço e quase sempre com melhor qualidade), encontram uma forma de contornar o problema da repetição do modelo e falta de originalidade,


Peças únicas, (quase) exclusivas, originais

A razão anterior encadeia na de originalidade, que a fast fashion não consegue satisfazer, com a prática de múltipla reprodução dos modelos, espalhando réplicas de uma mesma peça por todo o lado _ se considerarmos que certas marcas estão hoje em dia espalhadas por (quase) todo o mundo. Quando compramos moda actual, mesmo que de elevado custo, arriscamos sempre a confrontar-nos com mais pessoas no mesmo espaço vestindo algo igual a nós, para muitos até com a inevitável comparação entre aparência/apresentação ("fica melhor naquela pessoa do que em mim" ou vice versa). Em se tratando de presença em eventos, mais cresce essa preocupação de nos apresentarmos de forma original e única. Daí o recurso ao vintage para situações deste tipo por parte de clientes que, no dia a dia, não são consumidores de vintage. E este é um facto que se verifica não só em meios de consumo com "médio" poder de compra, como também nos consumidores de designers e labels (o risco do modelo repetido acontece da mesma forma, apenas se passa noutra esfera económica e de tipo de eventos): Nestes casos também o recurso ao vintage é cada vez mais frequente (fora esse, só resta o recurso à alta-costura).


Sustentabilidade (preocupação que se reflete mais num consumo de segunda mão, em geral, do que especificamente no consumo de vintage)

Preocupações com sustentabilidade podem também levar ao consumo de peças vintage, mas no caso de serem estas as principais/únicas razões não há uma incidência propriamente no vintage e sim no consumo de segunda mão em geral; o que está em causa é diminuir a pegada ecológica da produção têxtil actual, daí comprar vestuário já existente. A partir desta intenção, as preferências pessoais direcionarão estes clientes mais para lojas vintage ou mais para lojas de artigos actuais em segunda mão, ou de tudo um pouco, conforme os gostos...


Ao engano da "compra barata" ou "pechincha"

Há ainda pessoas que partilham a ideia de que "se é usado tem de ser barato" ou "mais barato do que novo" ou "pechincha" e que procuram lojas vintage na mira de fazerem as suas compras de vestuário a um custo muito baixo. Este é normalmente o tipo de clientes que pergunta preço e se dissermos "10€" eles acham que devemos baixar para 5€, mas se dissermos "1€" então devemos baixar para 50 cts e se dissermos "50 cts" mesmo assim é caro, sob o argumentos recorrente de que " ali tem novo e é mais barato!". A ideia de que "é usado, tem de ser barato" está ligada diretamente ao consumo de segunda mão, em geral, não propriamente ao consumo vintage (onde as peças muitas vezes pela sua qualidade, raridade/época ou designer não são de valor tão baixo quanto se poderia desejar). No comércio de segunda mão espera-se que uma dada peça seja mais barata do que quando foi lançada pela marca, ou comprada na cadeia de lojas correspondente. Mas nem isso é regra _ já encontrei peças de cadeias actuais em mercados de usados mais caras do que na própria loja/marca.


Alguns comércios/lojas vintage praticam preços quase irrisórios. Tornar o negócio do vintage um fast fashion de segunda mão, com vendas de baixíssimo valor e possibildade de o cliente comprar peças "descartáveis" não valoriza, a meu ver, peças que deveriam ser valorizadas, nem educa comportamentos de compra reduzidos (incitando a comprar quantidades excessivas), além de que desacredita o trabalho do comerciante/vendedor, cujo negócio exige bastante esforço e dedicação. De qualquer forma, contribui sempre para diminuir a compra de vestuário novo.

Também tenho de reconhecer que foi em situações deste tipo que muitas vezes consegui comprar verdadeiros tesouros a preço "da uva mijona" (e, como eu, suponho que muitos apaixonados do vintage). Por isso não me alongo nesta questão, para não ser mais papista que o Papa.


Não tendo por certo esgotado as razões que levam as pessoas aos espaços de venda vintage, pode pelo menos concluir-se, do que foi dito, que somos conduzidos por diversos motivos nas nossas visitas e/ou aquisições nestas lojas e que, mais do que tecer razões para lá chegar, devemos atender a comportamentos para lá nos movimentarmos ou permanecermos, independentemente das razões que nos fazem chegar.


O que verdadeiramente interessa (e falo em nome da Mão Esquerda mas penso que também de muitos outros vendedores de vintage) é que, "no matter what reason brings you to us", venham com o interesse e a bondade/tolerância que o vintage requer.

Este é um comércio delicado, porque a origem (produtores/fornecedores originais) das peças já não é detectável, não se constituindo como responsável ou alvo de reclamação de defeitos ou danos. Ao mesmo tempo, os actuais responsáveis (vendedores) não podem garantir algumas exigências de compra (que não se vai rasgar com o uso, que não isto ou que não aquilo.... ), quando muita informação sobre a peça é desconhecida de todos os intervenientes (quando não se trata de consignação).

É um comercio em que os produtos vendidos sofreram uso, melhores ou piores cuidados e foram recuperados e re-acarinhados por quem os aprecia.

Um comércio onde a identificação total e pormenorizada dos defeitos pode falhar e, consequentemente, a informação sobre esses defeitos ao cliente pode não cumprir, mesmo sem intencionalmente se pretender "enganar" ninguém.

É um comércio onde se deve entrar para perguntar/duvidar/acarinhar... mas não para desprezar.

Um comércio onde se deve respeitar contributos, trabalho, esforço, despesas e lucros e evitar exigir descontos como um direito em vez de os pedir como uma simpatia/mimo.

Um comércio onde se deve entrar como um explorador de mistérios, surpresas e belezas e não como um inspetor de lupa, predisposto a encontrar o defeito menos perceptível para a seguir, em voz bem alta, fazer uma listagem de problemas que a peça apresenta, orgulhoso da sua perspicácia e como se estivesse a ser obrigado à compra


Fora do espaço de loja, cada cliente deve respeito a si mesmo. Dentro do espaço de loja, também deve respeito às intenções, práticas e esforço que lá se desenvolvem. porque, mesmo quando não não é local de terapia (contrariamente ao meu caso :) é sempre um local de paixão, amores, dedicação, esforço, respeito e negócio. Amar as peças. Respeitar quem nos permite vê-las/tê-las.


Os "não"'

Não entrem para vender

Não peçam uma dada peça noutro padrão ou tamanho

Não perguntem se vamos ter mais iguais

Não exijam descontos, perguntem se é possível

Não desmereçam /desvalorizem a peça para obterem outros preços

Não confundam uso com danos/defeitos

Não entrem predispostos a identificar "o cheiro que estas lojas têm todas!"

(alíás agora com as máscaras soa ainda mais estranha essa observação, em muitos casos, infundada)

Evitem a piada careca de "roupa dos mortos", porque isso seremos nós todos um dia :)


Os "sim"

Cumprimentem ao entrar

Agradeçam ter-lhes sido permitido visitar


So fucking simple! O vintage agradece!















(Nota: sempre que utilizar aqui a expressão "clientes/compradores de vintage", refiro-me a compradores de vestuário e acessórios vintage, não compradores de objectos vintage de todo o tipo. A redação é pessoal _mas transmissível _ e a minha experiência circunscreve-se a este âmbito. Quanto ao termo "vintage", o seu uso aqui segue a definição aceite pela generalidade da indústria têxtil e de Moda, designando peças produzidas no intervalo de 20 a 100 anos, representativas de uma das décadas em questão).


Sobre o tema, "comércio vintage", muitas vezes nos interrogam/interrogamos: quem são os clientes das lojas vintage? Podemos traçar um perfil ou perfis do cliente vintage? Existe uma persona "vintage lover"? Os "iniciados" no vintage têm vindo a aumentar?

Parece-me preferível listar razões para as pessoas procurarem comprar em lojas vintage, a traçar um ou mais perfis, sendo que existem clientes com mais do que uma razão enquanto outros são movidos apenas por uma causa.

Questões também pertinentes e que raramente surgem seriam: "Os vendedores/proprietários de negócios vintage terão um perfil-tipo ou vários perfis-tipo? Poderemos estabelecer uma lista de razões para vender vintage?"

As razões que movem comerciantes não serão nem uma só nem comum a todos. Algumas sim outras não. Conhecer/compreender quem são os vendedores e que espaços e ofertas põem estes ao dispor dos compradores deve preceder a tentativa de traçar perfis ou listar razões de compradores. Por isso, neste post fala-se de vendedores, o próximo incide sobre compradores.


(Um aparte sobre os vendedores: entre aqueles que são alvo de entrevista ou interesse jornalístico, muitos há que evocam repetidamente terem sido acometidos por um "bichinho" sabe-se lá vindo de onde, que se lhe instalou nas entranhas e não mais os largou. Sempre que ouço ou leio (...) "Fiquei com o bichinho do vintage", frase-doença recorrente em entrevistas, só me evoca a ténia ou outra espécie de parasita/verme e penso "será que a minha avó, quando me dizia /tens a bicha solitária/ era a isto que se referia?"".

É mais ou menos como quando alguém diz "tenho uma criança dentro de mim" e penso logo que estará grávido/a; eu prefiro ter um palhaço dentro de mim, que solto, às vezes em modo comédia, outras em modo filme de terror).


Voltando realmente ao assunto (acho que vou perder-me algumas vezes, daí cortar o post em dois, que vai ser longo), combinar todas as premissas de compradores e vendedores num negócio harmonioso nem sempre se torna fácil.

Diz-me a experiência que há quem se envolva neste negócio do vintage não por amor nem por dinheiro (ou ambos), mas por engano (entendendo "por engano" como "sem ter espírito vintage", que também não sabemos muito bem o que é!!!). Só para complicar a vida aos outros dois hipotéticos (amor e dinheiro).

E algum deste "engano" (com consequências mais para compradores pouco avisados do que para vendedores) é responsabilidade de uma "third party"; refiro-me a um jornalismo inconsequente e repetitivo _ em modo copy paste _ com pouco cuidado de investigação ou de informação prévia, feito por pessoas que não distinguindo elas próprias o que é vintage repetem e reciclam textos sobre vintage sem novidade, e/ou sem interesse próprio pelo tema, apenas porque "todos falam nisso agora" e (des)informam um público, induzindo-o em erro. Acrescem a este "drama", os/as "influencers" também pouco informados/as e consequentemente maus (más) informadores do que esperar de cada local e/ou vendedor/a. Mas isso dá tema completo para um dos próximos posts. Adiante.

Sempre afirmei que segui esta actividade (venda) por paixão: paixão pela beleza das peças feitas noutras épocas e conservadas até ao presente, paixão pela descoberta de verdadeiros tesouros, em estética e/ou qualidade... Ao refletir agora mais seriamente sobre isto, identifico mais a manifestação de um síndrome/quadro clínico do que uma paixão _ embora as duas coisas se confundam bastante na prática. Quero dizer com isto que a criação do negócio passou mais por um processo de terapia do que pela continuidade de uma paixão precoce. Esta explicação segue a mesma linha de projectos que criaram empresas de serviços de limpeza totalmente constituídas por pessoas com distúrbios obsessivo-compulsivos. Permitia-se assim, a estas pessoas, uma resolução pessoal e realização profissional através da concretização das suas compulsões e sem o estigma de perturbação ou doença. Também eu, após quase 40 anos de compra/coleccionismo de vestuário e acessórios vintage, descobri a solução para poder continuar a praticar o que me dava enorme prazer, sem culpa e sem problemas de espaço ou consciência. De facto, o grande prazer de muitas pessoas como eu não reside na venda (mesmo que sejamos vendedores) mas sim na descoberta e na compra das peças. As vendas só tornam possível o desejado: comprar tudo o que apreciamos e valorizar esse TUDO partilhando-o com um público, sem armazenar nem guardar. Uma terapia eficaz. E (mais ou menos) lucrativa.

Outros responsáveis pelo negócio do vintage não o farão por razões semelhantes. Conheço quem o faça como outro negócio qualquer, tendo as peças comercializadas o mesmo valor ou interesse que teria o vestuário em 1ª mão, móveis ou fruta, tendo apenas identificado uma "oportunidade" ou "um nicho de mercado" relacionado com tendências.

Há pessoas que apreciam as peças, mas não consomem eles próprios vintage regularmente enquanto outros são vintage "total look" (e os "in between") _ um pouco como os dealers que só vendem drogas pelo lucro, sem consumir vs. os que vendem para, em parte, continuarem a poder "sustentar o seu consumo/adição. Há pessoas que compram lotes "cegos" enquanto outras escolhem toda a sua mercadoria, peça por peça. Pessoas que se preocupam efectivamente com o ambiente e a sustentabilidade e outros que nem por isso, mas sustentam que sim (apresentem-me UM comerciante que tenha iniciado o seu negócio vintage para salvar o planeta!). Pessoas que vão à caça das suas maravilhas e outras que praticamente só recebem consignações no recanto das suas lojas. Pessoas que compram e vendem e outras que só vendem, negócios que se fazem exclusivamente on-line e outros com loja físicas, ou uma mistura de ambos ...

A panóplia é grande e os espaços e ofertas são também variados, de acordo com a postura de cada um, sendo mais provável que um negócio de vintage desenquadrado de uma verdadeira apreciação desse tipo de peças acabe mais cedo ou mais tarde por mudar de rumo ou desaparecer do que outro feito "por amor ao vintage".

Haja diversidade. Preciso é que as expectativas de quem nos procura estejam esclarecidas sobre o que vão encontrar.

Primeiro, há que distinguir entre comércio vintage e comércio de "segunda mão": há lojas que vendem ambos, outras só vendem um dos dois tipos de artigos. É rara a peça vintage em loja que não é de segunda mão. No entanto, é muito frequente encontrarmos lojas de "segunda mão" onde artigos vintage são raros ou inexistentes.

Não esquecer também as peças retro: hoje em dia muitas das cadeias multinacionais de vestuário apostam em alguns modelos retro como tendências, em cada "season", reproduzindo modelos vintage em produção actual.

Estas iniciativas de produção retro são excelentes salva-vidas da paciência dos vendedores vintage. Porquê? porque permitem a compradores que não amam propriamente o vintage em geral, mas gostam de um modelito ou outro mais "trendy", realizar uma compra fácil sem ter de se embrenhar na linguagem única do vintage.O retro salva o vintage de compradores ao engano e facilita a vida destes compradores:


"Tem calças de cintura subida"?...como as que se usam agora?" /sou cool e tal/ ..."que giro, olha esta blusa!... Olha que até tem umas coisas que eu usava!!! "tem isto mas em M?" / "Vai ter mais iguais? ... / "Ok, aqui não me entendo"/"... anda, vamos ao shopping que é mais fácil, tem S, M e L e posso comprar pra mim e pra miga igualzinho sem ciúmeira de estilo!".


... Salva a nossa paciência também, poupando-nos energia para "vintage lovers".


Temos ainda comércio vintage com foco direccionado, por exemplo, para artigos de luxo, brands, designers... Também neste nicho específico encontramos por vezes pouco cuidado na distinção entre vintage e segunda mão, com algumas lojas a comercializar artigos de luxo de segunda mão relativamente recentes ao mesmo tempo que se auto intitulam de comércio vintage, antes se assemelhando a outlets de uma determinada marca (há sempre algumas mais redundantes, entre os consignatários), muitas vezes com modelos ligeiramente fora de época mas longe ainda do rótulo vintage.


(Blusões de Oleg Cassini, fim da década de 80/ princípio de 90, à venda aqui e aqui

Há também lojas que apostam apenas em marcas/designers com projecção actual, enquanto outros incluem nas suas ofertas designers hoje em dia já desconhecidos de um grande público, se não forem interessados por Moda. Por exemplo, se dissermos Chanel, Prada ou YSL, Burberry's ...todos sabem do que se fala, mas se mencionarmos Hannae Mori, Jonhatan Logan, Oleg Cassini, Yuki Tori ou Krizia, teremos possivelmente de explicar a muitos clientes quem são/eram. Se vendermos um artigo Max Mara, a venda não carece de explicações, mas se for um Marni (linha feminina da Max Mara nos anos 80/90) teremos provavelmente de "explicar" a peça! Ou se apresentarmos um vestido da Mondi!...

No nosso caso concreto, não estamos direccionadas para artigos de designer, mas quando

acidentalmente temos algumas peças destas tentamos, ao comercializá-las, respeitar o valor do designer sem no entanto esquecer o respeito pelo cliente, na informação prestada e no equilíbrio entre o preço de aquisição e da venda.


( da esquerda para a direita, vestido Mondi, anos 90, vestido Escada Couture anos 80 e vestido Marc Jacobs, à venda aqui e aqui )

Esta foi uma grande volta antes de chegar finalmente ao que me trouxe a este post: a tal persona vintage lover, mais os que não sabem ao que vão e os que sabem mas não não são vintage lovers at all!

Ao falar dos vendedores foi impossível não ir falando também de compradores. Pudemos ir desenhando a ideia de que há diversidade e que (quase) todos eles merecem um lugar na variedade de ofertas e estratégias na venda. As razões que os movem são o assunto do próximo post!








Parte 2

(In)congruências e contradições: criação e produção de vestuário de género neutro no universo da Moda actual.


Parti para esta procura com a ilusão de encontrar movimentos inovadores de moda que concretizassem a ideia: "A moda não tem género".

Os resultados centraram-se (quase) invariavelmente em temas como "9 Sustainable Gender-Neutral & Gender-Inclusive Brands For Your Next Wardrobe Refresh ", "14 Gender-Neutral Clothing Brands For All....", "Gender neutral fashion brands to know...", ou até "Men can wear dresses....!", não enveredando por artigos científicos e/ou trabalhos académicos.

Listavam-se "novas" linhas de criação e produção de vestuário alegadamente no gender ou de género fluido, aliadas muitas vezes a outros conceitos também "very trendy", como sustentável e/ou slow fashion.

Na prática? Vestuário de traços quase minimalistas, linhas retas, cinturas elásticas, ganchos e cortes amplos, cores neutras; quando há padrões, os preferidos são quadriculados, geométricos, abstratos e tartans; tecidos, opta-se pelos "naturais" (linho, seda, algodão...).

Por muito que as ofertas estejam embrulhadas para presente no gender, são muito mais do mesmo: tentativas de neutralidade através de linhas seguramente mais "masculinas" (ver post anterior).

Representam estratégias preguiçosas, a meu ver, quanto à intenção de cumprir neutralidade de género. Cumprir este requisito na indústria da Moda deveria focar-se em desconstruir os enraízados conceitos que orientam todo o design e produção de moda, com peças para géneros bem definidos _ para muitos ainda em sistema binário _ e mutuamente exclusivos, resultando em que apenas um determinado género tenha acesso ou seja incentivado a adquirir determinadas peças de vestuário. Qualquer pessoa deve poder usar qualquer peça de vestuário. É esta a ideia original que deveria levar à desconstrucção.

No entanto, o que encontramos é um movimento de criação de peças que atenuam morfologias, traços físicos e/ou identitários considerados pelos criadores/produtores como inibidores de compra/uso por parte de algumas pessoas. Na prática, retiram-se às peças formas/características marcadamente femininas, quer físicas (estrutura óssea e outras caraterísticas morfológicas) quer de identidade de género estereotipada (padrões florais, tons rosa ou bubblegum, folhos, laçadas, etc...). O “gender-neutral look“ acaba por ser apenas mais um estilo ou tendência, entre outros, e muito pouco neutro, em género. Mais uma vez, o male gendered , agora disfarçado de no gender!


(alguns exemplos de criações alegadamente no gender que encontrei nas pesquisas realizadas)


Quando critico as produções/as peças, não critico a estética: sou fã deste tipo de vestuário (fui inclusive praticante do estilo tomboy nos anos 80). A minha paixão pelo vestuário asiático em parte prende-se com características como estas, que agora são generalizadas aos movimentos no gender de moda.



( eu a apostar no tomboy style nos “late 80’s”)


Os asiáticos sempre deram cartas neste tipo de design sem ter de, para isso, defender statements alegadamente inovadores ou de defesa de direitos de género. Aposte-se na exuberância ou no minimalismo (como ilustram aqui algumas criações de Rei Kawakubo/Comme Des Garçons e de Issey Miyake), nenhuma característica da peça definirá um género se não for essa a intenção de quem concebe/produz/vende. Nas imagens que mais abaixo vemos podemos confirmar que não serão folhos e cores “pinky“ ou padrões florais que definirão que a peça é "feminina", da mesma forma que não serão traços mais sóbrios, rectos ou geométricos que definirão e destinarão a peça "ao masculino".


Aliás, o fenómeno no gender actual na moda é uma preocupação marcadamente do mundo ocidental. A experiência pessoal de estadias regulares no Japão e/ou na Tailândia por exemplo, permitiu-me, desde o fim dos anos 80 a esta parte, observar e conviver com pessoas ditas masculinas (impecavelmente) vestidas com roupas ditas femininas _ ou vice versa_ a trabalhar em todo o tipo de actividades, ou a circular nas ruas sem lhes ser votada qualquer atitude discriminatória, excepto por parte dos turistas ocidentais.


( da esquerda para a direita, criações de Rei Kawakubo/Comme Des Garçons, e criações de Issey Miyake _ fotos 2 e 3 _ dos anos 80, no Metropolitan Museum of Art)


O que critico na maioria das estratégias com que me deparei não é a estética, que aprecio bastante. É o facto de essas serem apresentadas como a concretização de um manifesto de não-discriminação que me continua a parecer acentuadamente discriminatório _ e que, como tentativas de desconstrução de moda de género, resultam fracas e pouco consistentes. Apenas funcionam para comercializar peças com uma determinada linha/estilo (nada mais que isso) através de uma "cosmética" de princípios que não cumprem.


( mais algumas criações actuais alegadamente “no gender”


Reclama-se a si a acção e o contributo e não se faz reflexão crítica da prática nem dos resultados. Acabam por ser formas preguiçosas de diluição de características que espartilhariam pessoas em peças de acordo com o género, limitando-se a "tentar colocar todas as variedades de pessoas no mesmo saco/na mesma roupa". Apenas optimizando pelo "masculino".

Assumir e declarar que "as roupas não têm género" deveria ser muito mais do que o acima descrito. Deveria significar que toda a gente tem direito a usar todo o tipo de vestuário que entender sem que, por isso, lhe seja atribuída qualquer "classificação de género" ou, ao contrário, qualquer crítica por estarem "a usar peças do género errado"; e que, para isso, tem de existir um trabalho implicado, por parte das pessoas e entidades responsáveis/envolvidas, de facilitação do acesso de todo o tipo de vestuário a toda a gente, independentemente de géneros ou sua ausência.

Possibilitar isto implicaria, na prática, trabalhar a dois níveis: conceptual e de produção.

Quanto ao conceito, implica liberdade total de criar, não estereotipificar as criações, não designar géneros para uso das peças em criação, não fazer depender as criações de apenas um género (embora a inspiração de um criador possa ter como base determinado grupo-alvo).

Quanto à produção, implicaria diversificar o acesso, distribuir, publicitar e colocar (tanto no espaço físico como online) sem distinguir ou separar por género. Para permitir o acesso inclusivo, seria necessário, em vez da padronização pelo "masculino" que tem vindo a ser feita, inovar nos "size charts", integrando/incluindo diferentes morfologias nos cortes de uma mesma peça, produzindo opções de compra que se estendessem para além dos habituais tamanhos _ dando assim possibilidade a que, todas as pessoas que quisessem, pudessem usar uma mesma peça, seja ela um vestido de organza em padrão floral, umas calças de smoking ou uma blusa de laçada.

Só então teríamos estratégias coerentes com os princípios que representam.

Ao reconhecermos diversidade nas pessoas, com igual direito de acesso às peças, em vez de reduzirmos diversidades a uma única linguagem de moda alegadamente representativa do no gender mouvement, deixaríamos de ter estratégias de criação "win-loose" (masculino -1/ feminino e outros géneros ou nenhum - 0), pasando a estratégias "win-win" quanto a não distiguir por género ou sua ausência, entre pessoas.

Uma outra possibilidade (real, está já a ser praticada por alguns seguidores de no gender fashion genuínos) seria o "feito à medida", solução que permite o acesso universal de uma criação a toda a gente que queira usá-la, porque é dedicado a cada pessoa para quem se produz a peça.

Em termos comerciais? Combina perfeitamente com o conceito da "slow fashion" mas é obviamente um caminho ainda longo quanto aos lucros do processo. Por isso, também, pouco atractivo para muitos que se auto proclamam seguidores do movimento.

Nem tudo foi, no entanto, desilusão nesta pesquisa: encontrei estratégias/criadores que considero genuínos na vontade de inovar e na defesa do conceito ( foi o caso da Origami, criações de lingerie e swimwear da responsabilidade de Rachel Hill, citando um exemplo, https://origamicustoms.com/); encontrei também pessoas com contributos fortes e profundamente coerentes, entre discurso e prática. A propósito, já com este post concluído, foi-me dado a conhecer, através de uma cliente/amiga, o trabalho de Alok V Menon, com cujo discurso me identifiquei completamente. Fico sempre muito contente quando encontro alguém que expressa de forma completa e clarissima aquilo que penso e não consigo expressar tão bem. Embora com o Alok a dizê-lo muito melhor do que eu, decidi publicar o que já tinha escrito, mas deixo aqui o monólogo dele para a BoF voices 2019, no final deste post, para que o possam apreciar tanto quanto eu.

Estas excepções mostram-nos que há um caminho a percorrer, bem diferente do que muitos alegam ter conseguido.

Produzir moda para Pessoas, muito mais do que um discurso ou uma estratégia comercial é um processo complexo e difícil de cumprir, pelo nível de exigência conceptual, de desconstrução de valores, estereótipos e (pre)conceitos enraízados, de mudança de discurso. E até financeira, de negócio. Se este processo complexo não antecipar a produção, não há no gender que vingue.


Como co-responsável de um comércio de vestuário vintage, serviu este post também para reflectir sobre que contributo podemos nós dar. Não somos envolvidos na criação e produção das peças, já que comercializarmos vestuário e acessórios criados noutras décadas, logo, longe de movimentos no gender actuais.

No entanto, contribuir é possível: não separar/localizar peças por género, não expôr nos manequins peças a partir de uma linguagem apenas masculino/feminino, não fornecer informação através de um discurso discriminatório, mas no entanto informar _ sobre cortes e tamanhos destinados originalmente a um dos géneros do binário. Por exemplo, não dizer "estas calças são para mulher" porque efectivamente são para toda a gente, são para quem as quiser usar; mas informar que "são de corte feminino" ou que "são um tamanho 36 feminino", porque isso significa um corte de perna com medida diferente do masculino, um gancho mais curto do que o mesmo 36 "masculino", etc.

Trabalhar para informar, mas não para discriminar, ao nível das várias formas de comunicação disponíveis no contacto com as pessoas-clientes é a nossa forma possível de contribuir para um movimento no gender. E nem estes pequenos contributos serão fáceis de pôr em prática: misturar as peças, não as separar por género, vai dificultar a escolha/compra a muitas das pessoas que nos frequentam (uma maioria habituada a comprar peças destinadas originalmente a um dos géneros do binário) e talvez as vendas. Os princípios acima das personalidades, caminho nem sempre fácil de articular com justiça _ para que tomemos consciência da complexidade de tarefas aprentemente simples, Se é assim em pequenos passos, imaginem todo o caminho a percorrer para uma verdadeira no gender fashion!

(que é como quem diz que é mais fácil falar do que fazer, ou que "pepper in others’ ass is refreshment, my dear”)






LSD - Fashion Stories

por Lígia Sousa

bottom of page