Comecei a investigar o tema “no gender” vs. binário" _ que ganha uma cada vez maior expressividade na área da Moda _ e fui-me apercebendo do que considero ser um conjunto de incongruências e contradições nos movimentos de moda "no gender" actuais. Desiludi-me, confesso, com algumas das estratégias desenvolvidas actualmente, quer de criação quer de produção de “moda no gender". Fiquei com uma enorme vontade de discutir o tema: contestar a direcção de alguns movimentos, as estratégias. E, principalmente, a falta de reflexão crítica na prática do discurso por parte de alguns dos actuais movimentos.
Embora a intenção fosse optar por um texto de opinião, mais do que informatIvo, não consegui evitar uma parte descritiva, antes de partir para a discussão, embora sem explorar com detalhe a evolução histórica do tema, focando-me mais no actual impacto em áreas específicas do vestuário e Moda. Para o texto não ficar demasiado longo, publico-o por partes.
PARTE I
"Conceitos, evolução e impacto"
Que a moda e a forma de vestir são comunicação, estamos fartos de ouvir, saber e (re)conhecer. A forma como nos vestimos e apresentamos é, foi sempre, também uma forma de comunicarmos: estatuto, desejos, orientações religiosas ou sexuais, exercício profissional, poder, pertença, intervenção política e/ou social... uma panóplia de informações que, umas intencionalmente, outras sem grande consciência individual, veiculamos e partilhamos, pela forma como utilizamos vestuário e acessórios no nosso dia-a-dia (quantos mal-entendidos, quanta informação distorcida... quantos enganos... ). A progressiva tomada de consciência do potencial de comunicação que o vestuário representa e o impacto que pode ter em várias áreas, levou a que questões de discriminação e/ou afirmação de direitos através do vestuário tenham vindo a ser abordadas, muitas delas beneficiando de mudanças e estratégias mais inclusivas (lembro dois exemplos: forma física/volume _ magros vs. gordos_ e género_ masculino vs. feminino, alvos preferenciais de intervenção positiva recente).
No que diz respeito ao género, até há bem pouco tempo as preocupações diziam respeito à discriminação entre masculino/feminino criadas pela linguagem do próprio vestuário (sendo estas questões parte de um protesto mais alargado, sobre papéis de género, socialização, distribuição desigual de poderes e direitos...).
O espartilhar de géneros sublinhado pelo vestuário tornou-se mais marcado a partir da Revolução Industrial (houve épocas históricas anteriores em que vestuário masculino e feminino se assemelhavam muito mais _ vejam-se por exemplo, as túnicas da Grécia Antiga ou o vestuário retratado em pinturas dos séc. XVI).
(da esquerda para a direita, vestuário na Grécia Antiga e duas pinturas do séc. XVI com vestuário da época)
Já no início do século XX, principalmente depois da mulher conquistar o direito de voto, foram surgindo movimentos femininos de uso de vestuário marcadamente masculino. Não encontrei o inverso com a mesma força de expressão: ao que parece, a não discriminação pelo vestuário foi-se fazendo sempre mais pela concessão, às mulheres, do uso de vestuário "masculino" (nos anos 20, com a criação de calças, blazers, smoking suits... e macacões; mais tarde, com novas tendências de carácter masculino _ Boyish, Tomboy, e mais recentemente, a tendência Boyfriend's...). Não encontramos equivalente masculino, nem na apropriação do uso de saias e/ou vestidos, nem de tendências (excepto algumas colecções que pontualmente incluíam nas criações masculinas uma destas peças _ Gaultier ou McQueen são disso exemplo) .
(da esquerda para a direita, vestuário anos 20, boyish style nos anos 40 e boyfriend's jeans)
Até as medidas criadas por regimes políticos, como o uso de fardamento na China da Revolução Cultural, ou a obrigatoriedade de uniforme em instituições educativas, embora tivessem, além da diluição de diferenças de classe comunicadas pelo vestuário, diluído também diferenças entre masculino/feminino, fizeram-no mais através do desaparecimento/diluição do caracter " feminino" das peças, "masculinizando-as" em generalidade.
Mesmo as manifestações de luta pelo direito à escolha de uniforme escolar, independente de género, em 2017 (e que conseguiram que, em Inglaterra, por exemplo,150 escolas tivessem passado a permitir a livre escolha das peças do uniforme), resultaram na adopção de calças por parte de muitas alunas, mas não na adopção de saias por parte de muitos alunos; em Montreal, manifestações semelhantes mostram estudantes masculinos usando saias como forma de exigir direito de escolha de uniformes independente do género, mas as saias que usam são... kilts (uma variante reconhecidamente "masculina" desta peça de vestuário). De novo, as duas faces da moeda não se verificam; como se o feminino ganhasse poder ao apropriar-se do direito ao vestuário masculino, mas o masculino enfraquecesse ou ficasse em situação desvantajosa, ao assumir o inverso.
(da esquerda para a direita, juventude chinesa na época da revolução cultural e manifestações pelo direito à livre escolha das peças do uniforme escolar)
As preocupações não discriminatórias entre masculino/feminino mais recentes reafirmam que homens e mulheres devem poder usar roupa “dita” feminina ou masculina como bem entenderem, sem ser(em) de alguma forma segregados ou desvalorizados individual ou socialmente por isso. No entanto, continua a verificar-se um grande desequilíbrio entre uso de roupa feminina por pessoas do género masculino e o seu inverso. Basta lembrarmos que ressaltamos ainda hoje a coragem de uma pessoa de género masculino que integre no vestuário de dia-a-dia uma saia ou um vestido, mas que não nos passa pela cabeça fazer o mesmo relativamente a uma pessoa de género feminino que use calças.
Na presente conjuntura, temos assistido a uma necessária modificação dos protestos, não na ideia de que “As roupas não têm género” _ esta mantém-se _ mas na alteração do conceito de “género”, que deixa de atender a uma definição binária “masculino-feminino” para englobar outras possibilidades, muitas delas nem sequer incluídas entre os dois pólos do binário, estando fora deste espectro.
Antes de falar do impacto actual do movimento “no gender” na criação e produção de moda, faço aqui um parêntesis que tenta esclarecer os conceitos.
A evolução nas áreas de intervenção científica, médica e estética, para a modificação de características atribuídas a um dos géneros da classificação binária, o desenvolvimento de estudos, ao nível da psicologia e saúde mental, de par com a aceitação progressiva de outras formas que não apenas a identificação binária com um género masculino ou feminino, têm permitido também uma evolução da utilização do conceito de género (ou sua ausência), a que temos vindo a assistir, se andarmos atentos.
Reconhece-se actualmente, quanto ao conceito de género, que, para além das pessoas que se identificam com um dos dois géneros do binário masculino-feminino, existem pessoas não binárias: estas podem identificar-se como pertencentes a ou mais géneros, ou a nenhum, ou mover-se fluidamente entre dois ou mais géneros ou nem sequer reconhecer a existência/pertinência do conceito.
A identidade de género, assim descrita, não se relaciona com a orientação sexual ou romântica da pessoa, tendo as pessoas não-binárias as mesmas opções de orientação sexual/romântica que as binárias.
Do que é dito se compreende que surjam, na área da Moda, novas preocupações de não discriminação de género pelo vestuário que ultrapassam as anteriores preocupações "binárias" _ possibilitar diferentes formas de criação e produção de Moda, que possam ser opção para pessoas tanto binárias como não binárias, o que introduz novas variáveis na criação/produção.
Quando comecei a pesquisar o que estão neste momento a fazer os criadores e produtores de Moda que pretendem cumprir objectivos “no-gender” (e percebemos que sejam apenas alguns, dado os não binários representarem ainda uma pequena percentagem de consumidores de moda) por um lado, a minha expectativa era encontrar estratégias que não discriminassem pelo género (prefiro até o conceito de “moda inclusiva” ao de “moda de género neutro”, adiante explico porquê) e que, por outro lado, usassem o conceito “género” como inclusivo de todo o espectro de pessoas binárias e não binárias (mesmo aquelas que não aceitam sequer o próprio conceito).
Esperava encontrar criações e produção que distinguissem clientes apenas por estruturas corporais/formas/medidas considerando essas diferenças na acessibilidade a uma mesma peça/criação em vez de basearem criações e produção num "estilo neutro": não-masculino, não feminino, não-outro”. O que significará realmente "estilo neutro", face ao género? Parece-me desde já terreno perigosamente ambíguo para definições.
A próxima parte deste post discute estas questões; identificam-se práticas mais e menos coerentes com os princípios defendidos, sugerem-se alternativas e discute-se ainda o papel do comércio de vestuário vintage no processo de não-discriminação de género(s)!
(Continua)