Antes das alterações climáticas (ou mais propriamente, da nossa consciência sobre estas alterações) e quando a escolaridade básica se estendia apenas pelos 4 anos a que chamavámos escola primária, era frequente, ou mesmo inevitável, que as redações/composições que escrevíamos sobre a Primavera começassem quase sempre da mesma forma: " A Primavera é a estação mais bonita do ano. As árvores cobrem-se folhas e os jardins de flores e as pessoas vestem roupas mais leves. Ouve se o canto dos pássaros (...), as andorinhas regressam (…) .
No colégio religioso da ordem de S. José, onde estudei, a Primavera era igual à de todas as redações e de todos os manuais escolares. E eu, mesmo escrevendo com a “segunda mão” (por ser esquerdina) num colégio religioso, pude escrever as minhas redações sem, felizmente, ter de contrariar a tendência do meu cérebro, prática habitual na instrução primária, à época.
As alterações climáticas trouxeram toda uma nova perspectiva, experiência sensorial e possibilidades_ linguística e de escrita _ sobre a Primavera. Temperaturas imprevisíveis, cheias e secas, incêndios, degelos e nevões, tudo se tornou expectável, mesmo entre os países que era suposto terem 4 estações. Por vezes penso se Vivaldi teria conseguido compor as Quatro Estações, vivendo hoje e não no tempo em que viveu.
As cadeias multinacionais que comercializam fast fashion tentam falar a linguagem do imprevisível _ pode ser Primavera todo o ano _ embora ainda insistam em manter alguma lógica climática num mundo cada vez mais às avessas de estações legíveis.
No festivais de música com nome de Primavera ( quando acontecem, …saudades!) chove e faz frio de outras estações!
Até os vírus influenza (desta vez parece que é o da gripe A que está a fazer mais estragos), completamente fora de calendário, atacam em Março o pessoal de Dezembro/Janeiro.
A Sumol disse-o muito bem quando, há uns anos, desenhou um dos melhores (a meu ver) slogans publicitários sobre o estado das estações do ano, ao lançar a frase "O inverno é psicológico!".
Há ainda outras “primaveras“ _ para as quais não há espaço neste post_ que sofreram/ sofrem, infelizmente, os péssimos Outonos semelhantes (penso na Ucrânia, por comparação à antiga Checoslováquia)
De protagonistas no calendário dos países de clima temperado, as estações do ano passaram a menoridade até na escrita, perdendo o direito a letra maiúscula em Português.
Com o início de mais uma Primavera (sim, errando na escrita e mantendo a maiúscula), olho através da Mão Esquerda: de fora para dentro, tentámos falar a linguagem das estações, mesmo que já não saibamos muito bem o que essa linguagem significa, enchemos a montra de flores e pintamos com as cores mais vivas todos os charriots. Olhando de dentro para fora, a Primavera é outra: é a Primavera da praça, a primavera dos Poveiros, que se faz de camas articuladas ao relento, canteiros improvisados em caixotes de lixo e almas à espera de nada. Ninguém melhor do que eles sabe que o Inverno é psicológico e que o significado de "renascer" que a Primavera transporta consigo é menos que zero.
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