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Martin Margiela _ A grandeza (in)visível

Dele se diz ser o ícone do design de Moda menos mediático de sempre.

Afirmam/opinam as más-línguas que foi exactamente o mistério em que Margiela sempre fez questão de envolver a sua pessoa e imagem individual que o tornou, contra todas as possibilidades, tão famoso e valorizado. Digo as "más-línguas" como poderia dizer "os de má visão", porque só cegos/críticos de vista curta ou negacionistas poderiam não ver/reconhecer o valor incontestável do designer belga, uma espécie de outsider ou "contra-designer" num mundo cujos principais alicerces são feitos exactamente do oposto da sua vida e obra: glamour, visibilidade e reconhecimento mediático.


Um dos aspectos mais interessantes do percurso de Margiela é o da recuperação de peças e materiais com respectiva reutilização, muitas vezes para função distinta daquela a que originalmente foram destinados, numa época em que a reutilização não era propriamente um objectivo valorizado no mundo da Moda e em que as preocupações com o planeta e a sustentabilidade mal começavam a desenhar-se no horizonte europeu.


Ao risco da aposta em materiais e peças já existentes, (re)criando-as, podemos somar a desconstrução das regras orientadoras do design de Moda dessa altura, conjugadas com a "invisibilidade" _ uma espécie de "anonimato de imagem", se lhe podemos chamar assim _ do designer. Margiela tentou sempre que a sua imagem pessoal "contaminasse" o menos possível a sua obra, aos olhos do público.


Sobre ele já se disse (quase) tudo (o que se conhece): podemos aceder à sua biografia não só na Wikipedia como através de uma infinidade de publicações/artigos, uns biográficos, outros de opinião (um dos meus favoritos é este _ https://agnautacouture.com/2015/07/05/martin-margiela-designer-of-intelligent-fashion/).

Também já se filmou o possível _ o mais recente documentário sobre ele data de 2019 e encontra-se disponível na Amazon, tendo sido alvo de grande alarido por ter conseguido a participação do próprio designer, o que não tinha acontecido, por exemplo com "The Artist is Absent" (https://www.youtube.com/watch?v=ulRtoMwxbHM), contando-se pelos dedos as fotos que da sua pessoa foram publicadas ou as entrevistas que deu.



Não vou, por isso, alongar-me mais em descrições biográficas. Se escolhi escrever sobre Margiela, dedicando-lhe uma amostra do tempo que merece em homenagens, fi-lo mais numa perspectiva pessoal do que biográfica, por ele ser uma referência/exemplo de atitudes e práticas que valorizo ou tomo até como cruciais num percurso profissional e/ou de vida.

No que respeita o processo criativo, maravilho-me com a desconstrução de regras do design de moda da época e respectiva reconstrução em processos originais, sem obediência a padrões de referência ("não agradar aos outros mais do que a mim próprio"), associada à recuperação de materiais e peças de todo o tipo, com recurso a mercados vintage, ou até a desperdícios de fábricas.

Foi pioneiro de políticas de reutilização e sustentabilidade na área da Moda quando estas preocupações eram ainda incipientes e fê-lo com resultados brilhantes, em termos quer estéticos quer criativos. O reaproveitamento de vestuário e acessórios, materiais de construção civil ou automóvel, plásticos, cartão... resultou brilhantemente em peças recriadas: casacos feitos a partir de cintos, carteiras feitas de luvas, casacos/corpetes feito a partir de cintos de segurança automóvel...

Poderiam as intenções ser brilhantes mas o resultado ter ficado muito aquém, como estamos cansados de constatar noutros autores e respectivas obras. Não foi o caso.

Existe ainda um outro aspecto do percurso profissional de Margiela que aqui saliento, praticado até agora com honestidade, coerência e permanência, em vez de mera manobra publicitária temporária, como alguns tentaram fazer crer.

Refiro-me ao facto de, intencionalmente, o designer ter "protegido"a sua obra da interferência constante da imagem do respectivo criador, perante o público que acompanha as criações e o mundo da Moda em geral, um público normalmente ávido desse tipo de informação. E esta é uma estratégia difícil de conseguir pôr em prática mas, principalmente, de manter com continuidade.

Por vezes, em conversa ou na escrita, evoco uma regra de vida que, sendo simples de enunciar, se afigura bem mais difícil de cumprir/atender no dia a dia: " os princípios acima das personalidades"! Este eixo orientador de acção implica clareza de objectivos e distanciamento/destacamento emocional das situações, para maior justiça e qualidade de decisões a tomar, pondo os objectivos em primeiro lugar e a satisfação "vaidades" e /ou de emoções _ periféricas mas imediatas, por vezes tão fortes que se sobrepõem ao que é prioritário _ em segundo plano.

Margiela pensava que "a obra deve falar por si mesma" e dispensar um criador a falar por ela ou a representá-la. Pode inclusive, essa presença, ensombrar a obra ou sobrepor-se-lhe, retirando à criação valor e protagonismo, em benefício de "vaidades mais imediatas" de um ego carente.Por isso, há que praticar "os princípios acima das personalidades".

Agindo em conformidade o designer belga provou o valor da sua obra e a qualidade incontornável do respectivo percurso criativo, dispensando validação através da fonte de criação. E deu continuidade a esse valor confirmado, ao longo dos anos. Contra aqueles que foram afirmando "Eventually, one day he will show up !". Enganaram-se _ "he never did".

Admiro, em geral, a posição de anonimato de autor pelo destaque da obra. Num projeto de qualquer natureza levado a cabo, valorizo muito mais o percurso e o respectivo impacto (e a qualidade que ambiciono lhe seja reconhecida) do que o autor/a/criador/a de per si . Importante é o processo e resultados conseguidos, bem como o desenvolvimento, melhorias e adaptação, em suma, crescimento. Com autor/criador posso ser catalisador, gatilho e /ou instrumento de acção (ou não), mas importante mesmo é o resultado.

E posso conceber e não conseguir realizar; posso realizar hoje e amanhã não estar mais capaz; e devo por isso ser capaz de entregar a quem realize, ou a quem dê continuidade. O importante é a obra. Mais do que ser eu a fazê-lo, é importante que se faça. Que o resultado esperado, o outcome, surja.

Um percurso profissional com paixão exige a qualquer pessoa _ feminino, masculino ou outrxs _ capacidades de maternidade: criar obra, como criar filhos, exige capacidade de criar, sim, mas também de autonomizar; e de nos deleitarmos ao perceber que a obra já não é nossa ou não somos nós, é do mundo ou é o mundo. Sendo nossa a responsabilidade de criação, desenvolvimento e êxito da obra, é, no entanto, dispensável a nossa pessoa individual in presentia, provocando esta até muitas vezes o eclipse _ total ou parcial _ da obra. (como quando alguém dirige perguntas ao nosso filho e nos sobrepomos a responder!..._ quem nunca!...).

Conforme discorro sobre isto vêm-me à memória situações (não tão raras, infelizmente) em que, havendo um projeto de autor com qualidade/de interesse público ou beneficiador de determinados públicos-alvo (sejam benefícios de ordem social, artística, cultural, económica ou qualquer outra natureza), e não podendo o próprio levá-lo a cabo, esse não se realiza, por não permitir o seu autor que seja realizado por outrem ("É meu! A ideia é minha! Eu é que.... . Aqui repesco uma expressão já vintage, utilizada por Herman José através de um dos seus personagens, "Eu é que sou o presidente da junta!").

Por isso, escrever sobre Margiela hoje, aqui, não cumpre apenas o objectivo de enfatizar o valor de um dos designers mais originais que conheço; é também um pretexto para valorizar um modus operandi cada vez mais raro, escasseando no mundo actual _ um mundo virtualmente alimentador de egos, mediático e de satisfação imediata, onde quem não é visto não existe, onde o reconhecimento da nossa existência é tudo e o anonimato "é a morte do artista (outra expressão vintage, já não identificada por leitores mileniais).





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